quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Marcelo Jacques de Moraes em entrevista sobre Christian Prigent

Marcelo Jacques de Moraes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq, apresenta uma trajetória acadêmica orientada para a literatura francesa. Reconhecido – com convites regulares para ministrar cursos sobre tradução literária na Universidade de Aix-Marseille e ganhador, duas vezes, da bolsa para tradutores estrangeiros do Centro Nacional do Livro, órgão ligado ao Ministério da Educação da França –,  foi convidado a participar do colóquio, realizado no Centro Cultural Internacional de Cerisy-La-Salle em 2014, sobre Christian Prigent, autor sobre o qual escreveu ensaios publicados no Brasil e na França. Jacques de Moraes e Prigent estiveram juntos no lançamento, realizado durante o Colóquio Internacional Poesia e Interfaces, de Christian Prigent por Marcelo Jacques de Moraes, editado pela EdUERJ através da coleção Ciranda da Poesia.

Marcelo Jacques de Moraes (à esq,) e Christian Prigent (à dir.)
no Colóquio Internacional Poesia e Interfaces (2015).


Como foi o processo de escrita do livro Christian Prigent por Marcelo Jacques de Moraes?

O primeiro livro que li de Prigent, no começo dos anos 2000, foi uma coletânea de ensaios intitulada Salut les anciens, salut les modernes, em que ele saudava, como aponta o título, tanto poetas já inseridos na tradição literária quanto poetas seus contemporâneos, de uma geração mais jovem do que ele, poetas nascidos nos anos 1960. A partir de então, comecei a trabalhar sistematicamente com ele em meus cursos de poesia francesa na universidade. Paralelamente aos textos de reflexão teórica e crítica, fui descobrindo sua obra poética, que, da mesma maneira, dialoga sempre, e ao mesmo tempo, com as mais diversas tradições e gêneros literários. No ensaio para a Ciranda, procurei reconstituir a trajetória do poeta, desde os anos 1960, espelhando esse diálogo constante em sua obra entre a produção propriamente literária e a reflexão teórica e crítica.

Na apresentação do livro, lemos “Em busca de uma língua, contra a língua, mas com a língua, eis uma fórmula que talvez sintetize com precisão o que seja o trabalho poético de – e para – Christian Prigent.”. Como essa perspectiva atravessa sua análise da obra de Prigent?

Prigent trabalha todo o tempo a partir da perspectiva de que nossa experiência do mundo é atravessada primordialmente pela língua, pelo corpo da língua. Como ele costuma dizer, “a língua nunca dorme” e, para fazer face aos “saberes de época”, aqueles que moldam nossa percepção das coisas, não há outra maneira a não ser trabalhar contra – mas sempre com – as línguas que nos cercam. Assim, sem sair do francês, Prigent deriva frequentemente, de maneira mais ou menos explícita, mais ou menos paródica, para línguas ou dialetos mortos, arcaicos ou minoritários (o latim clássico ou vulgar, o francês antigo, o galo, o bretão... ) ou contemporâneos (os diversos extratos da linguagem coloquial, o verlan das cités das grandes cidades francesas, os discursos estereotipados de classe, os jargões de linguagens técnicas, a língua das mensagens SMS...), mas não sem retorcê-los ou reinventá-los. Em minha apresentação, tento mostrar como esse trabalho vai se encarnando em vários tipos de matéria verbal, culminando não apenas em poemas em versos, de grande rigor plástico e formal , mas também em prosas  – não menos sofisticadas formalmente – destinadas às suas performances vocais.

Em conformidade com a tradição da poesia francesa moderna, a obra de Prigent se inscreve na “tensão entre o literário e o político”. Como essa dimensão política aparece na poesia de Prigent? Quais os principais pontos de sua problematização da literatura e da língua materna?

Marcelo Jacques de Moraes, no
Colóquio Internacional
Poesia e Interfaces
(2015).
A reflexão e o trabalho de Prigent sobre a língua são inevitavelmente políticos na medida em que se contrapõem desde os primeiros anos a toda a tradição francesa que se quer destinada à “razão clara” e ao “belo estilo” e que, assim, hierarquiza os extratos vivos da(s) língua(s) do presente e do passado. A literatura, nesse sentido, desperta a potência de transformação e de deformação da língua materna, e a consciência do poder que esta exerce sobre a experiência da realidade.


Fale-nos um pouco da escrita “crispante” ou “encrespada” de Prigent. Como o leitor pode entendê-la?

Trata-se, justamente, da encenação desse processo do despertar para a concretude da experiência do corpo, do mundo e da própria linguagem, despertar que nunca é pleno. Pois a experiência, enquanto tal, nunca pode ser totalmente objetivada na língua, ela nunca é totalmente compartilhável. A escrita de Prigent traz sempre a marca desse confronto, dessa dificuldade.

Prigent pensa o movimento vanguardista como a recusa da produção industrial de seu tempo e da modernidade que o precedera e se academicizara. Como esse ideal atravessa sua obra poética e sua atuação na revista TXT, fundada por ele em 1969?

A perspectiva da vanguarda – e da produção de uma revista – está sempre ligada de alguma forma ao sentido comunitarista, de partilha de uma experiência da linguagem e do mundo. A experiência da TXT foi perpassada por essa dimensão paradoxal que atravessa grande parte dos movimentos de vanguarda, e que o próprio Prigent define assim, referindo-se à revista: “Trata-se de fazer comunidade daquilo que resiste com todas as forças ao assentimento comunitário: cada um afirmando, pela crueza de um estilo, uma radical singularidade”.

Qual seu poema favorito de Prigent e por quê?

Gosto de muitas coisas, e sua obra tem tantas nuances e variações formais e temáticas que é complicado escolher um só texto... Mas cito aqui um pequeno trecho do começo de “Uma frase para minha mãe”, de 1996, texto em que Prigent mobiliza blocos de sensações afetivas e corporais a serviço da invenção linguística – e vice-versa:

Marcelo Jacques de Moraes (à esq.) e
Christian Prigent (à dir.), em praias cariocas (2015).
   "[...] embolo minha pelezinha de galinha nesse
   começo quase absoluto questão dissoluto, minha
   mãe, eu me lembro, foi como uma ratoeira de
   matéria erotífera, quando digo minha mãe tenho
   nos dentes palavras doces e mordentes, contudo
   não que ela o fosse, ela, na verdade, que ela
   fosse doce de morder ou que tivesse dentes
   amargos e ávidos prontos para ferir o coração
   que crescia em cancro na minha carne, minha
   mãe é mais o nome de mim quando não sei,
   enfim, é frequente, minha mãe, de mim o que
  fazer, minha mãe, não digo aquela que de fato me meteu no mundo de fato, também não falo das ameixas e da manteiga do nada que me enche a cabeça quando dormindo faço meu comércio próspero com minhas parceiras d’imagimãe, quando digo minha mãe, falo de tudo que faz que se habite a carne aqui embaixo na terra como as outras carnes, mas com palavras, é isso que lhe dá, à carne, nervo, minha mãe é a bola que tenho na boca e mesmo quando me assoo, não sai fácil, minha mãe é a carcaça em fio de ferro que me faz ficar de pé sobre a terra [...]"

Entrevista concedida a Thayssa Martins, graduanda de Letras – Inglês/Literaturas na UERJ e estagiária da EdUERJ.

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